S e j a m . B e m . V i n d o s !


"Trabalhes no que amas, e não terás de trabalhar por mais nenhum dia de sua vida"
Confucio (2500 a.C.)

HISTÓRIA




Um pouquinho da experiência e das histórias destes heróis da tradição da cutelaria artesanal no Brasil:


Entrevistas com Lourival Gonçalves, Seo Nenê, cuteleiro artesanal tradicional em MG




Entrevistas com Edir Moreira, cuteleiro artesanal tradicional em MG






Entrevista com Ricardo Vilar, cuteleiro artesanal moderno em SP



Os primeiros passos,  e o Brasil Colônia

Já na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel pode-se notar um forte interesse e uma certa obsessão pelo ferro, a prata e o ouro. Falava-se muito nos metais e era grande a expectativa de que os nativos pudessem revelar a localização geográfica de alguma fonte de riquezas. A nova terra descoberta por Portugal era, sem dúvida, uma grande promessa e, como acontecia na época, o propósito inicial não era ocupá-la, mas, sim, extrair tudo o que fosse rentável e comercializar o que interessasse com os nativos aqui encontrados. Embora na nova terra muito pudesse ser plantado, o que realmente interessava era saber o que havia para extrair e transformar. São reveladores esses trechos da carta: "... Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!..
[...] Em seguida o capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra... [...] Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas...[...] Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!... (Trechos extraídos da carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei D. Manuel - 01 de Maio de 1500)
A expedição de Martim Afonso de Souza, em janeiro de 1532, desembarcou na barra do Tumiaru, nas praias de São Vicente, iniciando a ocupação do solo descoberto. Entre os tripulantes vinha Bartolomeu Gonçalves, ferreiro contratado por um prazo de dois anos pela Corte, também conhecido como Mestre Bartolomeu Fernandes e respondendo ainda pela alcunha de Bartolomeu Carrasco (apelido empregado na época para designar um ferreiro). Sua presença nessa expedição tinha o propósito de atender as necessidades de obras utilizando ferro na armada e no auxílio aos seus integrantes, nesse primeiro momento de ocupação do solo brasileiro. Esse trabalho era feito empregando o ferro originário da Europa, pois ainda não se tinha notícia da existência desse ou de qualquer outro metal nas terras descobertas. Ou, melhor, até então os colonizadores ainda não haviam iniciado a exploração do solo brasileiro, a não ser para a lavoura e a agricultura. A manutenção de objetos trazidos na frota, a forja de instrumentos para utilização na lavoura e a confecção de novas armas ou utensílios de ferro eram prioridades nesse momento.
Aos poucos, outros artesãos, especialistas em mineralogia e fundição foram se instalando na nova colônia com a mesma finalidade. A tradição determinava que o ofício de ferreiro deveria ser passado pelo patriarca aos seus descendentes, e assim se deu com o mestre Bartolomeu. Seus filhos e netos passaram a produzir artefatos de ferro de importância relativamente pequena, para que fossem comercializados ao longo dos rios Anhembi, Tamanduateí e Jurubatuba. À margem esquerda do rio Jurubatuba, acabaram por instalar uma forja que ficou conhecida por Anhembi. Próximo a esse local, em breve, o padre José de Anchieta fundaria a Aldeia de Santo Amaro, futura cidade de São Paulo.
Onde hoje se encontra o Pátio do Colégio, no centro da cidade, o noviço jesuíta Mateus Nogueira montou, ainda no século XVI, sua tenda de ferreiro para a forja de materiais de pequeno porte, tais como foices, facões, machados (na época utilizados mais como ferramentas do que como armas) além de cravos, anzóis e outros utensílios domésticos.
Mas quem primeiro teria trabalhado no processamento da redução de minério de ferro teria sido Afonso Sardinha. Ele descobriu, em 1589, minério magnético (magnetita) no morro de Araçoiaba, na atual região de Sorocaba, no interior de São Paulo. Esse, sim, teria sido o primeiro estabelecimento montanístico da colônia. Para explorar esse metal, aproximadamente um ano depois, Afonso Sardinha instalou nas proximidades do morro uma forja e dois fornos rústicos para a produção de ferro a partir da redução de minério. Essa forja foi a primeira fábrica de ferro de que se teve notícia no Brasil.
Em 1578, Bartolomeu Fernandes foi intimado pela Corte a fornecer foices, pregos, chapas de ferro e outros artefatos sempre que fosse solicitado. Nesse período, os colonos que já começavam a se enriquecer com a cultura do açúcar e o tráfico de escravos, principalmente na Bahia e Pernambuco, passaram a encomendar com freqüência objetos de adorno para suntuosas igrejas (algumas preservadas até os dias de hoje) e para a decoração de suas moradias. No início, esses objetos eram feitos a partir da prata que era trazida do Peru e posteriormente passou a ser utilizado o ouro encontrado nas terras brasileiras. Essas casas de fundição e cunhagem, existentes também no Rio de Janeiro, resultariam em importantes escolas de ourivesaria.
As forjas rústicas proliferaram pela colônia para atender necessidades específicas, especialmente os engenhos, necessitados de equipamentos mecânicos como caldeiras, moendas, casa de purgar que, juntamente com a casa-grande e a senzala, formavam uma pequena cidadela independente. Na época, qualquer gênero de fabricação que não fosse de interesse direto de Portugal para produção ou comércio, ou que pudesse provocar concorrência à produção na metrópole, era proibido. Aliás, mesmo após a descoberta de jazidas de ferro em solo brasileiro, sua exploração foi controlada pelos colonizadores para evitar conflitos de interesses, ou seja, aquilo que Portugal tinha em seu solo em quantidade que julgasse suficiente para suprir ambos os países, ou mesmo que não produzisse, mas que chegasse ao Brasil através de seu comércio, não podia ser explorado nas novas colônias sem a devida autorização. No caso do ferro, embora a metrópole não fosse produtora, já que não o possuía, eram constantes as ordens, contra-ordens e interrupções de exploração para suprir as necessidades das colônias.
Paralelamente às descobertas e explorações, a economia da colônia era movida pelo trabalho escravo, que utilizava índios e negros africanos como principal mão-de-obra. A base dessa economia inicial era a cultura da cana e a comercialização do açúcar. Boa parte dos escravos negros trazia consigo habilidades específicas adquiridas quando ainda trabalhavam em seus países de origem. Dentre eles, alguns dominavam a arte de trabalhar o ferro e por isso eram destacados para auxiliar os colonos portugueses. O sistema de exploração do trabalho escravo se estendeu até o final do século XIX, quando a lei Áurea proibiu definitivamente a escravidão no Brasil.
Em 1590, ano em que Sardinha instalava a primeira fábrica de ferro, circulou a primeira notícia oficial da descoberta de ouro em terras de São Paulo. Em 1597, Portugal enviou alguns mineiros para coletarem três tipos de metal que já se sabia existir no Brasil: ferro, ouro e prata. A partir dessa ordem, foi autorizada a construção de duas pequenas forjas nos arredores de Ipanema, na região de Sorocaba, mantidas em atividade com sucesso razoável até 1629, quando foram definitivamente encerradas. Só no começo do século XIX essas forjas foram reativadas dando início oficialmente às atividades siderúrgicas no Brasil.




1500- Chegam os colonizadores portugueses trazendo consigo adagas mediterrâneas, punhais, espadas e alabardas como Armas Brancas.

1532- Martim Afonso de Souza chega a São Vicente (SP) e traz consigo Bartolomeu Fernandes, apelidado de "Bartolomeu Carrasco", ferreiro contratado por 2 anos para produzir itens de ferro, entre eles artigos de cutelaria.

1597- Afonso Sardinha constrói o primeiro engenho (fundição) de ferro do Brasil em Araçoiaba da Serra (SP).

c.1600- Os bandeirantes percebem que suas espadas e rapieras são de pouca valia nas matas fechadas e nos conflitos com os índios, logo desenvolvendo uma espada de lâmina larga, embrião dos famosos facões enterçados, ou "facões sorocabanos", esta última denominação referindo-se a cidade de Sorocaba (SP).

c.1700- no Rio de Janeiro, artesãos de ourivesaria produzem adagas mediterrâneas de extremo requinte, usando prata e ouro em suas furnituras, muitas especialmente destinada à clientela abastada.

1722- criada na capitania de São Paulo a primeira lei brasileira regulamentando o portede armas, a qual incluía "facas de ponta, espadas e catanas".

c.1750- surgem as primeiras variantes encurtadas do "facão enterçado", ou "facão sorocabano", genericamente chamadas de facas sorocabanas.

1780- primeiros registros documentais das facas mineiras, inicialmente nada mais doque adagas mediterrâneas com empunhadura e bainha em prata lavrada.final do século XVIII - surgem as primeiras facas denominadas "Parnaibas", em função de terem se originado na cidade de Parnaíba (PI).

c.1800- surgem as primeiras criações, normalmente muito requintadas, dos cuteleiros do Sul da Bahia.

1810- é criada a Fábrica de Ferro de São João do Ipanema na então Vila de Sorocaba,comarca de Itú, em São Paulo.

1817- surgimento das primeiras facas de ponta com características tipicamente nordestinas na Aldeia de Pasmado, atual cidade de Abreu e Lima (PE).

1830- surgimento das primeiras facas gaúchas com apresentações tipicamente brasileiras.

1840- nesta década surgem as primeiras facas "franqueiras" ou aparelhadas de prata,originárias da cidade de Franca no Interior paulista.

1850- a firma Viúva Laport & Cia., de Pelotas (RS), proprietária da loja Casa Laport, passa a representar a empresa belga Scholberg & Cie., logo tornando-se a famosa Casa Scholberg e comercializando as famosas lâminas de mesmo nome em todo o Rio Grande do Sul;Inicio do século XX - com o movimento do Cangaço, surge todo umnovo estilo na facas de ponta e punhais da região Nordeste.

1904- Em Porto Alegre (RS) , a Metalúrgica Abramo Eberle inicia a produção industrial de facas gaúchas, inicialmente com modelos de empunhadura e bainha em prata.

1910- Luis Bernardi, de Barretos (SP), joalheiro de profissão, cria as mais requintadas facas "franqueiras", ou aparelhadas de prata, do Brasil.

1911- em Carlos Barbosa (RS), Valentim Tramontina inicia sua cutelaria, com modelos simples e utilitários.

1912- em Amparo (SP), o imigrante italiano Alfonso Pascetta Cosmos funda a famosa AP Cosmos.

1915- inicia-se o trabalho da famosa família Caroca nos Estados da Paraíba e Ceará.

c.1920- intensifica-se a importação de itens de cutelaria, principalmente de Solingen,Alemanha e de Sheffield, Inglaterra, o que perduraria até a década de 1950.

1931- em Porto Alegre (RS), é fundada a fábrica Mundial.1931 - em São Paulo (SP), inicia-se a produção da fábrica Corneta.

1936- a Casa Scholberg encerra suas atividades.

Final da década de 1930- o imigrante japonês Yoshisuke Oura , descendente de uma antiga família de "espadeiros", inicia a produção de "katanás" na cidade paulista de Mogi das Cruzes, tornando-se o pioneiro nessa atividade em nosso país, na qual permanecerá sem concorrência durante quase 30 (trinta) anos, sendo posteriormente seguido por Kunio Oda e Tomizo Ishida.

Inicio da década de 1960- surge na cidade São Paulo o trabalho pioneiro daquele que seria o expoente máximo da moderna cutelaria artesanal brasileira, Roberto Gaeta, ou BobG, que é como assina suas criações. Poucos anos depois, em Belo Horizonte(MG), o emigrante húngaro Antal Bodolay viria a fazer par com ele, estabelecendo-se em Belo Horizonte (MG).










MESTRES DO FOGO



Consultor Cultural e Artístico – Museu de Arte de Macau/China
Comissário da Exposição “Mestres do Fogo”
António Conceição Júnior




Ao golpearem as suas forjas, os ferreiros imitam o gesto primordial do deus forte; são, na verdade, os seus acessórios, toda a mitologia tecida em torno da fertilidade agrária, da metalurgia e do trabalho é, porém, de origem relativamente recente. Proveniente de data mais tardia do que a olaria e agricultura, a metalurgia encontra-se no quadro de um universo espiritual onde o deus celeste, que ainda estava presente nas fases etnológicas da recolecção de alimentos e caça de animais de pequeno porte, é finalmente banido pelo Deus forte, o Macho fertilizador, esposo da Grande Mãe Terrestre.

Mircea Eliade • A Forja e o Cadinho


O arquétipo e a essência



Quando, há milhares de anos atrás o ferro de meteoritos começou a ser usado, sendo trabalhado com sílex, era considerado uma dádiva dos deuses, devido à sua origem celestial.

Não se sabia ainda quanto duraria a Idade do Ferro, unindo milénios de história até aos nossos dias, provavelmente de um modo tão inconsciente que a maioria desconhece o período pelo qual aquela se estende.

A emergência da manipulação do fogo na história da humanidade trouxe uma lenta, mas consistente, percepção da sua essência.

À medida que as artes do fogo floresceram, nomeadamente a primeira cerâmica, tornou-se mais intensa a ligação com o fogo graças ao processo de descoberta, no útero da Mãe-Terra e a ousadia na extracção de minérios e manipulação de uma liga não ferrosa composta de cobre e zinco, designada por bronze.

As propriedades sagradas de transmutação do fogo eram já conhecidas e mesmo adoradas em muitas culturas à medida que se descobriam minérios de ferro.

Os ferreiros, manipuladores do imateral fogo e do ferro, passaram a ser investidos de identidades sagradas pois pertenciam ao grupo restrito daqueles que ousavam desafiar as tremendas forças da Natureza vindas das entranhas da Mãe Terra, combinando-as com os poderes de transmutação do fogo aprendidos nos fornos dos oleiros.

Do trabalho do ferro surgiram duas ramificações: a das alfaias agrícolas e a das armas de gume. Se, por seu lado, as alfaias agrícolas conheceram um desenvolvimento bastante anónimo, a forma principal das armas de gume, a espada, transformou-se num arquétipo histórico, comum a todas as culturas.

No entanto, poucos saberiam à época, quão próximo se encontravam da essência da verdade quando aos ferreiros foi conferido um estatuto especial – algumas culturas exigindo que o ferreiro vivesse à parte da comunidade e não fosse circuncidado de modo a, assim, subsumir a força feminina e a força masculina – que lhe permitia lidar com essas poderosas forças. Na verdade, o forjar do ferro não é mais do que uma recriação do âmago da Terra, uma gigantesca fornalha de ferro derretido cheio de propriedades magnéticas que asseguram, ao mesmo tempo, a gravidade e os campos magnéticos que protegem o planeta.

Estas culturas arcaicas estavam, de facto, a recorrer a linguagens diferentes para chegar à mesma essência: as forças que sustentam a vida. Por outras palavras, de cada vez que um ferreiro forja uma espada está a recriar, na sua forja, a essência da Terra, oculta sob a crosta e o manto.

O fogo, os elementos e o aço


Geralmente, considera-se que o ferro começou a ser usado na China por volta do século XIII A.C., de acordo com algumas escavações em Xingjian, onde foram descobertos numerosos artefactos de ferro em túmulos, submetidos a datação através de carbono 14. No entanto, foram descobertas provas da existência de ferro meteórico forjado em gumes apostos a machados de bronze originários dos períodos Shang e Zhou.

No entanto examinemos, por um momento, os cinco elementos tais como foram formulados pela civilização chinesa: fogo, madeira, metal, água e terra, ao mesmo tempo que mantemos em mente os principais elementos da força magnética, os pólos positivo e negativo.

A descoberta do aço encarna em si a essência de todos os cinco elementos: o fogo enquanto agente de transmutação, a madeira enquanto fornecedora de fogo, o metal enquanto elemento a ser transformado, a água enquanto agente alquímico final do aço e a terra enquanto fonte-útero.

Só quem já admirou o aço a ser aquecido ao rubro durante a noite, revelando os seus segredos a olhos conhecedores, poderá compreender o incrível processo de transformação que o metal incandescente sofre ao ser imerso em água.

Toda a estrutura molecular se altera sob o choque do Yang incandescente entrando na receptiva água Yin. De novo é a criação recreada pela fusão das partes numa totalidade que é agora denominada aço. Yang e Yin, ou pólos positivos e negativos que geram energia magnética, fundem-se num metal novo cuja aparência, à medida que arrefece lentamente, pode comparar-se com as múltiplas aderências orgânicas com as quais um recém-nascido vem ao mundo.

Nesse sentido, o ferreiro é tanto um procriador como um re-encenador, sendo a seu modo, um alquimista que, talvez o único de entre todos, conseguirá compreender o acto da criação através da manipulação das forças primordiais do Masculino e do Feminino.

A espada, o símbolo e preconceitos


Não há qualquer dúvida de que a espada de aço foi uma das armas mais duradouras da história da humanidade, um símbolo de poder, de destruição, mas também dos valores mais fundamentais e das mais temidas manifestações da humanidade, tais como a honra, coragem, lealdade e justiça, por um lado, e, por outro, da crueldade, da traição e da cobardia.

Desta inevitável dualidade, porém, o arquétipo que emerge é o de espadas que encarnam míticas atribuições de poder, como na lenda celta de Manaan, da Excalibur do Rei Artur, da Espada de Damócles, da Espada Flamejante do Arcanjo São Gabriel, da Espada Taoista de Captura de Demónios e, por último mas não de menor relevância, a Espada que a Estátua da Justiça brande.

Hoje em dia, as espadas são consideradas como objectos cerimoniais e anacrónicos, parte de um passado longínquo. Para além da elaborada tecnologia de que possa estar imbuída, não nos devemos olvidar de que o termo ‘tecnologia’ provém da palavra grega techne, que não se refere somente às actividades e capacidades dos artífices, como também às artes da mente e às belas-artes 1.

Como tal, à medida que o mundo se altera, o conceito tradicional de arte enquanto “imutável, nacionalista, superior ou inferior e estritamente definido” dá lugar a uma perspectiva dinâmica e em alargamento constante pela qual o conceito de arte regressa à sua abertura conceptual original e, como sempre, sob uma nova visão.

Vivemos num tempo da história da humanidade em que não pode haver mais lugar a preconceitos nem a divisões das artes em superior e inferior.

Assim, atualmente, é possível olhar a espada como um objecto de arte e de design pois, por exemplo, é com frequência tão ornamentada como a joalharia, com intrincados padrões e técnicas de aço, sendo concebida para propósitos específicos que evoluíram ao longo dos séculos.



O ferreiro contemporâneo e o multi-culturalismo


É portanto sob os auspícios do anacronismo da espada que os ferreiros criadores de lâminas trabalham hoje, repetindo ainda a mesma fusão antiga de milénios do quente e do frio, libertos da obrigação de providenciar instrumentos de destruição e capazes, agora, de se concentrarem nos aspectos criativos que envolvem novas técnicas de trabalhar o antigo ofício do aço com o único fim de apurar e renovar esta forma de expressão.

É de grande interesse observar a diversidade de vias, técnicas e estilos escolhidos pelos ferreiros contemporâneos para esta exposição. Estas são escolhas que reflectem preferências culturais que, muitas vezes não têm origem no seio da cultura do próprio ferreiro, exprimindo escolhas multi-culturais em que o Ocidente e o Oriente se reúnem: o que coloca estas obras na vanguarda enquanto representantes da miscigenação cultural.

Não estou certo que outros Museus tenham dedicado a sua atenção à apresentação de ferreiros contemporâneos, mas é minha convicção de que o Museu de Arte de Macau envereda deste modo por um caminho pioneiro ao mostrar uma exposição de Ferreiros de Espada Contemporâneos, assim reconhecendo a existência destes Mestres do Fogo.

Com esta atitude o Museu de arte de Macau coloca-se em sintonia com uma concepção contemporânea da Arte e da Cultura, oferecendo uma perspectiva mais alargada de expressões artísticas que, a outros, passariam desapercebidas.

1. Martin Heidegger, in The Question Concerning Technology.



Fonte: Texto de introdução da exposição no museu de Macau - China 
http://www.mam.gov.mo/show.asp?prg_id=2005101501&language=2



Mitologia e Simbolismo do Ferreiro


    As técnicas de metalurgia e o domínio dos metais sempre deram origem a mitos e lendas em todos os povos. Cercados da admiração e do espanto dos povos antigos, os ferreiros deram origem a uma infinidade de ritos, crenças e práticas secretas, constituindo um capítulo extenso e fascinante da mitologia universal. Não é demasiado afirmar que a profissão de ferreiro confunde-se, com o tempo, na mente dos povos, com a própria função de xamã ou curandeiro. Tanto isso é verdade que, como veremos adiante, os ferreiros, em algumas culturas, podem inclusive seguir o caminho da Luz ou das Trevas, de forma idêntica ao que ocorre com os xamãs ou magos da tribo. E, assim como a casta sacerdotal, os ferreiros constituem uma irmandade secreta, respeitada e temida ao mesmo tempo. (Em alguns povos, inclusive, os filhos dos ferreiros casam apenas entre si, num claro mecanismo de proteção de suas técnicas e segredos.)

Embora não seja preciso enfatizar algo que parece óbvio, é importante para a compreensão do fenômeno lembrar que foi o domínio do ferro a mudança que impulsionou o salto tecnológico da chamada Idade do Ferro, quando o homem passa a possuir armas e ferramentas capazes de mudar a face da natureza e da sociedade. Apenas para efeito de ilustração, o leitor pode imaginar o que ocorreu quando tribos que possuíam apenas armas de bronze viram surgir no horizonte uma tribo hostil munida de armas de ferro. A desproporção da resistência entre esses dois metais ilustra muito bem o tamanho do salto que a humanidade deu com o domínio dessa técnica.

Assim, não deve surpreender que com tanta antiguidade a seu favor a figura do Mestre-Ferreiro esteja nas mitologias mais primevas e que mesmo entre os deuses ancestrais haja ferreiros e oficinas e bigornas. Em sua forja o ferreiro repete o gesto criador de transformar o fogo primordial em sua obra plasmada em ferro.

Para os antigos, o ofício de ferreiro comportava uma identidade com as forças criadoras do Universo. Para os hindus, nos Vedas, o primeiro ferreiro é Brahmanaspati, que forja o mundo em sua oficina. Os Taoístas chineses acreditam que “ O Céu e a Terra são a grande fornalha, e a Transformação é o grande fundidor.” (Tchuang-tsé) Os camponeses do Vietnã do Sul explicam assim a criação do mundo: “ Bung toma de um pequeno martelo e forja a Terra, depois, usando um martelo curto, forja o Céu. Tian, a Terra e Tum, o Céu, casam-se...”

           Em outras mitologias o ferreiro não é o Criador, mas sim a divindade manufatora, que executa na prática os planos da Criação. Assim, Tvashtri forja a arma de Indra, que é o raio, Hefesto forja os raios de Zeus, Ptah faz as armas de Hórus, os anões mágicos forjam o certeiro Mjolnir, o martelo de Thor, deus da guerra e do trovão.

É preciso notar também que a primeira utilização foi a do ferro meteorítico, como entre os esquimós da Groenlândia. Quando Hernán Cortez perguntou aos astecas de onde vinham suas facas, eles apontaram para cima, indicando o céu. Os Maias do Yucatán e os Incas peruanos também davam ao ferro meteorítico mais importância do que ao ouro. Os beduínos do Sinai acreditam que aquele que conseguir forjar uma espada de ferro meteorítico será invulnerável em todas as batalhas e abaterá sempre os seus inimigos. O ferro de jazidas não foi utilizado no Egito antes da XVIII Dinastia e o Novo Império. Devido a essa associação com os poderes do Céu por um lado e do fogo, por outro lado, muitas vezes os ferreiros eram de certo modo excluídos do resto da tribo, embora tratados com respeito.

Havia muitas vezes uma certa veneração e um temor sagrado pelos mistérios que faziam surgir do fogo as peças de ferro que nas mãos do homem conquistariam o mundo. Por isso a mais das vezes o seu trabalho era cercado de ritos, purificações, proibições sexuais e mesmo exorcismos. Considerava-se sempre que o ferreiro era capaz de capturar em sua forja as forças demoníacas contra ele enviadas ou que assolassem a comunidade. Em outros povos, como os tuaregues, o ofício de ferreiro e seus segredos profissionais eram restritos à realeza ou aos chefes tribais: não é por outra razão que as lendas nos dizem que Genghis Khan era um ferreiro antes de tornar-se o conquistador implacável que a História registra.

Segundo a Bíblia, Tubalcaim foi o primeiro ferreiro: “... ele foi o pai de todos os laminadores em cobre e ferro.” (Gênesis, c.4,vs. 20-22) Para os chineses é Huang-Ti, o Imperador Amarelo, o patrono dos ferreiros e o criador de sua arte. Se por um lado o ferro tem um aspecto sagrado, principalmente o ferro meteorítico, curiosamente algumas vezes o ferro aparece como metal impuro e potencialmente diabólico, possivelmente por sua utilização como arma de guerra. Dessa forma podemos entender, por exemplo, porque na construção do Templo de Salomão eram proibidos instrumentos de ferro (I,Reis,6-7).

Na Índia ambém o ferro é considerado nefasto; os antigos egípcios consideravam que o maligno deus Seth tinha os ossos de ferro e Platão assegura que os habitantes da Atlântida caçavam sem utilizar armas de ferro. Os Druidas, igualmente, utilizavam apenas foices de ouro para cortar o visgo sagrado, pois eram proibidos de usar objetos de ferro, metal associado ao sangue e à guerra.

Entre os povos siberianos acredita-se que o ferreiro tem o poder de curar e inclusive de prever o futuro pelas visões do fogo em sua forja, mas que também é assediado pelos maus espíritos que buscam atrapalhá-lo em seu trabalho. As batidas do martelo na bigorna tomam, nesse contexto, o aspecto de badaladas de sino, o som límpido que mostra aos demônios que ali tem um homem trabalhando e não pode ser impedido.

Para os Yakutes, o ferreiro partilha das artes de K’daai Maqsin, divindade perversa que mora em uma casa de ferro subterrânea. Para os Buriatos foi Boshintoj, o ferreiro celeste, quem enviou seus nove filhos para ensinar a metalurgia aos homens. Eles casaram com as filhas dos homens e deram origem às famílias dos ferreiros. Para os Buriatos, portanto, ninguém pode ser ferreiro se não pertencer a uma dessas linhagens ancestrais. Também nessa tribo existem “ferreiros negros”, que sujam o rosto com fuligem para celebrar seus ritos e cultuam as forças do Mal, sendo profundamente temidos.

Essa ambivalência se revela também no continente africano, onde podemos ver que os ferreiros são venerados em alguns povos e desprezados em outros. Entre os Bari do Nilo Branco, entre os Joloff, os Tibbu, os Wa Ndorobbo e os Masai, por exemplo, o ferreiro é desprezado e temido e inclusive pode ser morto impunemente, sem represália da tribo. Por outro lado, os Ba Lolo do Congo atribuem aos ferreiros uma origem comum com a casa real, os Wa Chagga os honram e os temem ao mesmo tempo. Entre os Ba Songe e os Ba Holoholo, entre outros, os ferreiros sempre fazem parte do poder político da tribo. No Irã, a dinastia real é iniciada com o ferreiro Kavi, que veio a ser o fundador da dinastia Kavya. Seu avental de couro em uma lança tornou-se a bandeira do Irã.

Muitas vezes o martelo, a bigorna e a forja são reverenciados como seres autônomos. No Togo o ferreiro se refere ao martelo e sua “família”, em Angola o martelo é tratado como um príncipe e mimado como um menino. O ferreiro da tribo Bakitara trata a bigorna como se fosse uma noiva e a leva para casa em uma procissão que imita a procissão nupcial.

Outro aspecto importante sobre os ferreiros é que, através dos tempos e em várias latitudes o ofício reúne em sociedades secretas como a “Männerbünde” na Alemanha ou nas sociedades japonesas dos forjadores de Katanas. Ainda hoje a preservação dos segredos de suas técnicas é parte fundamental da arte da metalurgia.

Deus-artesão ou homem que luta para dominar o fogo e os metais, o ferreiro é sempre um símbolo da própria luta humana de conquistar o mundo com a determinação do seu trabalho, a sutileza de sua arte e a força de uma tradição milenar.
Nas batidas do martelo na bigorna, o mundo se reconstrói feito de ferro e o ferreiro, acima de tudo a si mesmo forja, de aço, como os deuses primordiais.



Referências bibliográficas:
Ferreiros e Alquimistas – Mircea Eliade
O Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase- Mircea Eliade
Dicionário de Símbolos- Jean Chevalier/ Alain Gheerbrant
Dicionário de Deuses e Demônios- Manfred Lurker
Texto de Antonio Augusto Fagundes Filho 06/12/2010
Site da Associação Gaúcha de Cutelaria




Deuses dos Ferreiros e da Metalurgia


Goibniu: Deus celta da antiga Irlanda, ferreiro mágico, seu nome deriva de Goban (ferreiro), e é também conhecido como Govannon. Possuía o elixir da vida eterna. Curiosamente, também era o deus da cerveja.

Hasam(m)eli: Deus ferreiro entre os hititas, adorado como descobridor da arte de trabalhar o ferro.

Hefesto / Vulcano: Entre os gregos o deus ferreiro, filho de Zeus e de Hera. Ao nascer, foi por ela arremessado do alto do Monte Olimpo porque a rainha dos deuses o considerou muito feio. O bebê Hefestos, que tinha nascido ao amanhecer, caiu durante todo o dia e só ao entardecer atingiu o solo, em queda tão tremenda que o tornou manco para sempre. Desde então, em sua oficina subterrânea é o mestre-armeiro dos heróis e o artesão dos deuses. Entre outras, são suas obras: o cetro de Zeus, a carruagem de Hélios, o Sol e a égide de Atena. As lendas referem que Hefestos, o filho desprezado, logo conquistou com o seu talento um lugar tão importante entre os deuses que lhe foi concedida a mão da mais bela de todas as deusas: Afrodite, a deusa do Amor.

Kinyras: Um deus reverenciado em Chipre, mas originário da Síria onde além de ser o deus da fundição de ferro é também o criador da magia e da música.

Kotar: (Kautar, Chusor) deus sírio da metalurgia, senhor de feitiços e encantamentos. Construiu um palácio para o deus Baal e forjou as armas para a luta contra o deus-mar Jamm.

Kurdalaegon: Para os povos da Ossétia, no Cáucaso, é o deus dos ferreiros e ao mesmo tempo o porteiro do outro mundo, pois é ele que coloca as ferraduras nos cavalos dos homens mortos para que façam a última jornada. Por isso exerce papel essencial nos ritos fúnebres dessa etnia.

Ogum: Deus iorubá, senhor da guerra e dos instrumentos de ferro. No Brasil, conforme a região, é identificado como São Jorge (RS, RJ, SP) e Santo Antonio (BA). Ogum é padroeiro, portanto, dos soldados, dos policiais, dos homens de coragem, assim como dos ferreiros, carpinteiros, lavradores e todos os que utilizem ferramentas de ferro para enfrentar o mundo. Seus filhos são orgulhosos e turbulentos, corajosos e apegados à honra.

Qaynan: Na Arábia pré-islâmica deus dos ferreiros e criador do ofício. A palavra árabe Qain significa ferreiro.

Sethlans: Deus etrusco do fogo e dos ferreiros.

Shossu: Deus dos ferreiros entre os Abkhazes, do Cáucaso. Sua imagem era representada pela própria bigorna e sobre ela eram celebrados os juramentos e as promessas.

Svarog: Deus ferreiro da Eslavônia, também é tido como criador do casamento.

Teljavelick: Na mitologia da Lituânia é o ferreiro divino, que na noite dos tempos criou o Sol em sua forja e o colocou no céu.

Referências bibliográficas:
Ferreiros e Alquimistas – Mircea Eliade
O Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase- Mircea Eliade
Dicionário de Símbolos- Jean Chevalier/ Alain Gheerbrant
Dicionário de Deuses e Demônios- Manfred Lurker
Texto de Antonio Augusto Fagundes Filho 06/12/2010
Site da Associação Gaúcha de Cutelaria

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